Conto de um dia de felicidade
Eram três horas e eu andei depressa pra chegar mais rápido, afinal de contas estava muito atrasado. Passei na farmácia e comprei três caixas de calmantes. Não tive tempo nem de fazer a barba. Quando olhei pelo retrovisor do carro Jeniffer estava ao lado de um garoto de olhos verdes, loirinho e parecia muito ansioso.
Jeniffer também parecia ansiosa, mas disfarçava. Parei o carro no acostamento, no meio da rua. Fiquei alguns instantes olhando-os procurando entender toda aquela situação. Eu acabara de sair de uma gravação de doze horas seguidas sem parar. Cansado, estressado, triste, desanimado, esgotado de toda aquela situação estressante, com muita vontade de tomar um banho morno e aconchegante e dormir por longas, longas, longas horas. Não havia entendido porque Jeniffer depois de seis anos me telefona e diz que precisa falar comigo.
Fiquei sabendo, dois anos mais tarde, quando terminamos nosso relacionamento; Aliás, relacionamento não, apenas um caso de alguns dias, que havia se casado com o Pedro, o mais riquinho do nosso grupo da pós. Consegui emprego numa das melhores emissoras de TV do Brasil. Nossas vidas nos levaram para caminhos diferentes. Ela não quis seguir a carreira de atriz por motivos pessoais. Resolveu se casar com um engenheiro frustrado que também desistiu da carreira. Nunca entendi aquele pessoal que resolveu fazer pós graduação
Seis anos se passaram e eu me tornei um dos melhores atores e diretores de TV do Brasil. Isso foi uma revista quem disse depois de uma pesquisa feita com representantes da área artística. Eu sempre fui humilde e tentei fazer da melhor maneira possível o meu trabalho e o reconhecimento veio, é claro. E Jeniffer não passou de um caso meu. Uma dessas pessoas que passam por nossa vida e nunca mais vemos. Pelo menos era o que eu pensava.
Estava ela ali, ansiosa, dedos nervosos e boca trêmula. Guardei os medicamentos. Sai do carro e andei até ela. E claro não pude deixar de dar um sorriso para o garoto que de pronto me retribuiu. Beijei-a no rosto e disse estar feliz por vê-la depois de anos.
Não me pareceu à vontade. Convidei-os para tomar alguma coisa. Andamos até um quiosque e sentamos à beira da praia. Aquele olhar não me era estranho. E o tempo todo me sondava, me incomodava. Jeniffer tentava disfarçar, o ajudava a beber a água de coco que a mesma fez questão de comprar. Eu sempre gostei de criança, mas não conseguia estar confortável diante de Jeniffer porque há muito não nos víamos, por isso nem dei importância tamanha ao menino. Procurava o olhar dela, mas era o dele que eu via o tempo todo. Aquele olhar emocionado de quem ganha o primeiro carrinho de controle remoto, o primeiro vídeo-game, a primeira bicicleta. E o sorriso que ilumina mais que muitos sóis. E eu não conseguia entender porque Jeniffer estava tão tensa, se bem que estava diante de uma figura das mais conceituadas do Brasil. Eu era um ator e diretor famoso.
Pensei comigo mesmo: “Ela está sem graça de me pedir emprego. Suponho que esteja passando por dificuldades. Não tem dinheiro suficiente para sustentar o menino;” embora a sua aparência era de bem cuidado. Então puxei assunto sobre uma possível atuação num seriado que estava dirigindo de muito sucesso. Não esquecendo que estava distante da carreira, imaginava, e a volta lhe causaria certo desconforto, por isso uma participação pequena. Ela sorriu e disse obrigado, mas não queria. Estava bem como produtora numa gravadora humilde do Rio de Janeiro. “Você não ganha bem” disse eu, “porque não aceita a minha proposta?”
Jeniffer sempre fora muito sincera. Seu semblante mudou radicalmente da tensão nervosa para a raivosa. “Eu não vim pedir emprego para você. Não preciso,” retrucou. “Então por que veio?” perguntei. Não me respondeu. Continuou a levar o canudo a boca do menino que ainda me olhava e sorria engraçadamente, quase a me constranger. Pedi desculpas. Ela aceitou.
“Faz seis anos. Não consigo esquecer nenhum minuto dos seus olhos e do seu sorriso” Não me olhava. “Eles estão o tempo todo me dizendo que você faz parte de mim até hoje.” Quando disse isto por um momento pensei que estava se declarando. Meio sem graça dei vazão ao carinho do menino.
“Quando ficamos aquele dia dentro do teatro João Caetano, senti que foi o dia mais especial da minha vida, embora você soubesse que eu passava por uma crise familiar”
Era verdade. Jeniffer se drogava quase que todos os dias tentando preencher o vazio de sua alma. Era uma viciada em cocaína, por isso que me afastei dela.
“Você desistiu de mim e seguiu a sua vida depois daquela minha última crise”
“Você não acha melhor o seu filho ir brincar um pouco na areia?” solicitei. “Não vai fazer bem para ele ouvir essas coisas.”
O menino andou um pouco e sentou-se num montinho de areia e passou a se divertir juntando areia entre os pés.
“Depois daquela noite eu fui para casa e descobri que meus pais haviam decidido se separar. Me droguei a noite toda e fui parar no hospital. Mas não preciso falar sobre o que você já sabe.”
“Eu só não fui te ver porque estava gravando...”
“Não estou te cobrando nada. Só quero relembrar o que aconteceu para você conseguir entender. Depois de uma semana o Pedro começou a me visitar constantemente. Ele me amava muito. Sempre me amou. E no momento que eu precisei ele esteve do meu lado. Resolvi me casar com ele e naquele mesmo ano preparamos tudo. Me livrei das drogas. Achei um motivo maior e melhor para viver. Achei graça na vida.
“Eu sei. Seu filho né?”
“Me separei do Pedro dois anos depois que nos casamos. Ele cuidava muito bem de nós dois, mas você estava o tempo todo ao nosso lado.”
Não consegui entender o que Jeniffer falava. E esperei que concluísse seu pensamento. Me preocupava um pouco porque ela parecia estar mal. Seus lábios tremiam ao falar e sua voz trêmula. Não conseguia me encarar direito e toda vez que falava sobre o que sentia por mim, negava mais ainda o olhar.
Quando disse que eu estava o tempo todo ao lado deles eu logo imaginei que me viam pela TV, me viam nos jornais e nas revistas. Eu era uma sombra no relacionamento dos dois. Mas não era de Pedro e ela que falava.
“E acordava e você estava lá. Eu ia dormir e você estava lá. O tempo todo era o seu olhar e o seu sorriso que eu via. Mas isso não era ruim, ao contrário era o que me dava forças para viver e o que me deu forças para vencer as drogas.”
Arrastei minhas mãos até as suas mãos trêmulas e busquei o seu olhar perdido no chão. Ela me encarou e com o olhar mais tênue me levou até o menino brincando na areia e continuou:
“Você, mesmo que eu não quisesse, estava do meu lado o tempo todo”.
“Quantos anos tem o menino?” perguntei meio desconfiado.
“Seis”, ela me respondeu. “Ele se chama Gabriel”.
Andei até ele. Abaixei-me a sua frente. Fiquei a observar o que fazia. Com suas pequenas mãos construía um castelo meio torto. Fez duas janelas, uma porta e uma ponta
“Pai este castelo é a casa que a gente vai morar quando eu crescer. A mamãe disse que só ia me dizer quem era você quando eu crescesse” Chegou mais próximo, sussurrou ao meu ouvido: “Mas eu já sei que é você o meu pai” E riu. “Mas não fala nada pra ela que eu sei, tá?”
Meus olhos derramaram lágrimas de emoção e surpresa. Não sabia se o agarrava e saia com ele correndo pela praia a fora aos risos ou se o abraçava ali mesmo sentado na areia. Fiquei sem reação. Jeniffer veio por detrás dele, ajudou-o a montar o castelo e disse: “Eu tentei, mas ele sabia o tempo todo. Afinal você está em toda parte”.
Passei a entender o olhar e o sorriso do menino desde o momento do nosso encontro e porque não conseguia tirar minha atenção deles. Depois de passar a surpresa e o choque, peguei-o nos braços e deixei-me levar pelo seu cheiro inocente e pele macia. Agradeci a Deus por ter me dado uma segunda chance porque naquele dia eu havia esgotado todas as minhas forças. Estava deprimido. A fama e o sucesso vieram rápido demais. Eu tinha decidido tomar todos os comprimidos e dormir para sempre. Mas naquele momento a vida renasceu para mim.
Olavo Vieira em 08 de fevereiro de 2009.